abril 29, 2010

Fora da época

Fruta da época é uma expressão que se utiliza muitas vezes para designar algo que ocorre no tempo próprio, tal como a fruta que, de acordo com as leis da natureza, tem um determinada época de colheita e utilização.
Hoje já não há fruta da época!
Em qualquer altura do ano come-se qualquer espécie de fruta e, se formos honestos connosco próprios, temos de concluir que gostamos de comer algumas frutas bem fora da época.
A edição portuguesa do "Le Monde Diplomatique" de 12 de Março publicou um interessante trabalho sobre a produção de tomate em Almerida, região espanhola onde ocorre a maior taxa de dias de exposição ao sol da Europa.
O trabalho intitulava-se "E tudo por mais alguns tomates" e fazia o registo das vergonhas ligadas ao cultivo do tomate nessa região: mão-de-obra fortemente formada por imigrantes ilegais, ganhando €32 a €37 por jornada de 8 horas de trabalho, superlotando pequenas"casas" sem electricidade e sem água; contratação controversa de camionistas do leste europeu, esquemas à margem da lei que condicionam o custo final do transporte.
Tudo isto se faz porque ninguém parece estar disposto a pagar mais de €2 por cada quilo de tomate.
Os métodos de cultivo evoluiram e já há produtores que só utilizam a cultura de superfície, na qual a raiz não chega estar enterrada.
O trabalho termina citando o Chef francês Jacques Pourcel "Eu só cozinho verdadeiramente o tomate no Verão, quando cresceu na terra, em pleno campo, amadureceu ao sol, não muito regado, submetido ao mínimo de produtos químicos. Nessa altura torna-se saboroso, não demasiado sumarento, apurado por uma ligeira acidez".
Será que encontramos isso num tomate de inverno?
Que preço paga a humanidade pela fruta fora da época?
A vida cómoda que procuramos levar evita que pensemos em coisas que não deveríamos esquecer nem mesmo quando nos sentamos à mesa!

abril 20, 2010

3000 molhos?!

Em Dezembro, fora dos Açores, saí do hotel para ir almoçar a um restaurante onde encontrei dois amigos de cá, com quem acabei por almoçar.
Na conversa um deles referiu-se a um amigo, residente nos EUA, que era Chef especialista em molhos!
Não duvidei, mas fiquei admirado e fui pesquisar. É verdade! São os Chefs Saucier!
Um molho é um condimento mais ou menos líquido, quente ou frio, que acompanha um prato. Serve para acrescentar, mas deve harmonizar-se e não sobrepor-se!
Fernand Jobert, gastrónomo francês, terá dito que "um molho deve prolongar o gosto de um prato, mas nunca mascará-lo, nem decompô-lo".
Os cerca de 3000 molhos identificados com origem na França fazem com que os molhos sejam uma questão francesa.
Do tempo dos Romanos chegou até hoje o conhecimento do "garun" e da Idade Média o "poivrade", o "cameline", o "dodine" e o "robert", todos picantes ou agridoces em demasia.
Só nos sécs. XVII e XVIII é que surgiram molhos mais refinados e aromáticos: "bechamel", "soubisse", "maionese", "duxelle" e "mirepoix".
A Novelle Cuisine contribuiu para um aligeiramento dos molhos e introduziu novos ingredientes.
Os molhos, contudo, não perderam importância. Segundo Franco Luise “os fundos e os molhos de base são tão importantes para a cozinha como os alicerces de um prédio".

abril 13, 2010

Um gourmet não é um totó!

Lembro-me que num dos primeiros dias que passei em São Miguel, quando para cá vim frequentar a Universidade, dei uma volta por Ponta Delgada e identifiquei alguns restaurantes onde não me parecia que eu um dia viesse a entrar.
Somos, os Açores, uma terra de peixe, apesar de ser difícil encontrá-lo, bem tratado, nos restaurantes.
Sempre comi, com gosto, peixe fosse ele nobre ou pouco valorizado comercialmente. Aprecio-o de qualquer espécie ou forma de preparo.
O chicharro é quase um ícone de uma determinada economia piscatória que muito dificilmente terá condições para assegurar uma vida digna a quem se dedica, em exclusivo, à sua apanha.
Não conheço outro local onde se comam chicharros como em São Miguel.
O chicharro é um peixe simples, apanhado por gente humilde e sempre preparado segundo técnicas cristalinas, facilmente executadas por quem os queira cozinhar.
Chicharros fritos, batatas cozidas, em regra com a pele às vezes cozidas em água do mar, cebolas curtidas, num suave vinagre de vinho, e feijão guisado, uma surpreendente companhia, constituem-se como um dos pratos mais servidos em alguns restaurantes de São Miguel.
Sou apreciador desse manjar que consumo periodicamente.
O peixe fica, em algumas partes, crocante, mantém o seu sabor e o do mar que é sublinhado pela presença do sal.
Na Cervejaria Sardinha, vulgarmente conhecida por “Mané Cigano”, comem-se dos melhores chicharros que há em São Miguel. O serviço não tem primores, mas é rápido e atencioso, a sala é pequena, simples e de mesa corrida.
Todos comem à mesma mesa.
Todos são iguais: apreciam boa comida, o convívio dos amigos e uma boa conversa.

abril 05, 2010

Fabrico Próprio

Fui despertado para esta nota pela leitura de um artigo na revista “Gastronomica – The Journal of Food and Culture” que fazia referência ao projecto “Fabrico Próprio”.
“Fabrico Próprio” é uma expressão que me habituei a ver em diversas pastelarias, sobretudo do Continente. Em muitos casos, pelo aspecto do estabelecimento, sempre pensei que se tratava de publicidade enganosa.
Hoje só posso pensar, que salvo escassas e honrosas excepções, se trata de uma frase que, tendo sido verdadeira um dia, ficou, pelo trabalho que daria a retirar, inscrita na montra para a posteridade.
Nos dias de hoje já quase não há “Fabrico Próprio”!
Lembro-me, no Faial, de diversos bolos e bolachas, que comia amiúde, muitos dos quais os contemporâneos dos meus filhos já nem o nome conhecem.
Jesuítas, palmiers, garraios, canelas, picos, folhados de coco, queijadas (no Faial chamavam-se queijadas a quase todos os bolos que partilhavam o formato com o bolo de queijo que lhes deu esse nome) de mel, rosquilhas de manteiga e de coco, palitos de limão e de cacau, carcavelos, bolachas nº2, cavacas e roscas de água.
Grande parte disto já se perdeu. Ou já não se faz ou produz-se com técnicas e matérias-primas que transformaram, para pior, aromas, sabores e texturas.
Lembro-me das queijadas de nata (as únicas que se faziam no Faial na altura) que nada tinham a ver com os tão conhecidos pastéis de nata, mas eram igualmente saborosas.
Hoje já praticamente não se fazem pastéis de nata nos Açores. Vêm todos pré congelados de fábricas sedeadas em outras paragens e que os produzem exactamente iguais.
É o resultado da globalização e da normalização que também avança sem dó nem piedade no domínio da gastronomia, apagando memórias, aniquilando diferenças e gerando, mais vezes do que o desejável, coisas que não fazendo mal a alguém agradam a ninguém.
Mas há cada vez mais gente em busca da genuinidade das coisas simples e únicas, o que abre espaço e cria oportunidade para negócios bem sucedidos de “Fabrico Próprio”.
A defesa do “Fabrico Próprio” é uma espécie de “ambientalismo de pastelaria”!